
«Dei um berro de alegria quando soube que ia entrar nos Morangos!» A confissão, feita no entusiasmo dos 14 anos, pertence a Mariana Pacheco, uma das jovens actrizes da mais mediática telenovela da TVI.
A rebelde Teresinha, nome da personagem que levou aos ecrãs, não quer apenas representar. Sonha estrear-se como manequim e ser cantora. «Fui ganhando dinheiro e aprendi a comprar as minhas coisas sem depender de ninguém, e isso sabe muito bem», revelou num especial que a Flash dedicou aos miúdos actores a propósito do Dia Mundial da Criança.
Na revista Sábado, nessa mesma semana de Junho, David Henriques, 13 anos, o Sérgio da série Os Serranos, conta que os colegas não dispensam uma oportunidade de passear com ele na rua. «Gostam de ser vistos comigo», garante, para acrescentar que a popularidade lhe trouxe outros benefícios: «Até os professores ficaram mais simpáticos.»
Fama. A palavra em torno da qual giram, hoje, quase todos os sonhos infantis. Aparecer na televisão, ser fotografado para as revistas, receber convites para as festas mais in, viajar, ter uma imagem bonita, ser invejado pelos amigos e ganhar montes de dinheiro.
Um objectivo que os miúdos já não guardam para quando forem grandes, mas que tentam atingir, à semelhança de Mariana e David, cada vez mais cedo. Com a cumplicidade dos pais - que os inscrevem em cursos e agências - ou nem por isso, mas ainda assim arrastados à força de birras para castings disto e daquilo. Afinal, tudo à sua volta lhes diz que ser famoso é do melhor que há. Mas será mesmo assim? Que tal parar uns minutos para reflectir sem preconceitos?
Chuva de estrelas
Primeiro do que tudo, alarguem-se os horizontes. Se dúvidas houvesse sobre este fenómeno global, um estudo britânico, realizado junto de 2500 alunos do ensino primário e divulgado em Dezembro de 2006, pelo jornal Independent, veio mostrar que, para os miúdos com menos de 10 anos, o máximo é mesmo ser rico e famoso.
Ocupando depois o terceiro e quatro lugares, na lista daquilo que as crianças mais valorizam, aparecem outras profissões de grande impacto mediático: futebolista e cantor.
Resultados que não surpreendem a socióloga Susana Henriques. «Não me espanta propriamente e penso até que os resultados se poderiam manter noutras idades», afirma a investigadora do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES) do ISCTE, em Lisboa, a concluir uma tese de doutoramento sobre a imagem mediática dos consumos e estilos de vida. E justifica: «A ideia de fama tem uma conotação agradável e apetecível. E o sistema mediático actual reforça-o. A imagem que passa é a de pessoas comuns que atingem rapidamente uma elevada visibilidade/fama e será a partir desta identificação que o desejo de também ser assim é empolado.»
A psicóloga Sara Bahia leva a sua explicação no mesmo sentido. «Se procurarmos a génese disto, talvez possamos falar dos Beatles, uma banda que conquistou a fama mundial e cujos membros eram muito idênticos aos ingleses comuns. Depois, vieram outros grupos musicais e todos os programas televisivos das últimas décadas para mostrar que a celebridade está ao alcance de qualquer um», afirma a docente da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, em Lisboa, para sublinhar: «No fundo, para mostrar que para se ser especial não é necessário ser-se, afinal, nada de especial.»
15 minutos de Fama
Sim, é verdade. Os sonhos de fama não são de agora. Quantos de nós não passaram os anos 80 da nossa infância a suspirar pela glória, desejando ser tão popular como os M&M vindos do continente americano - Madonna e Maradona, por exemplo? A questão é que a visão dourada de futuro dos miúdos de hoje difere, em muito, das velhinhas fantasias mais ambiciosas.
Não só as crianças da actualidade esperam que a fama lhes apareça sem esforço, como a aguardam de forma instantânea e, mais extraordinário, a encaram como uma espécie de direito adquirido.
«Não há uma valorização daquilo a que nos habituámos a chamar transpiração, ou seja, dos tais 99% de trabalho que levam à obtenção dos objectivos. E a culpa não é só dos meios de comunicação social», diz Sara Bahia, apontando o dedo: «Há muitos pais que, talvez por quererem que os filhos sejam famosos, acabam por incentivar esta forma de pensar assente no facilitismo.»
Sem querer generalizar, mas não fugindo ao tom crítico, a também coordenadora da Associação Nacional para o Estudo e Intervenção na Sobredotação afirma que alguns pais são até um bocadinho infantis na sua visão do futuro dos filhos.
«Muitos acabam por dar uma visão demasiado cor-de-rosa e fantasiosa aos miúdos, não os incentivando ao domínio de uma série de outras variáveis que serão muito importantes para o seu futuro. É como se, pelo simples facto de os meterem numa escola de futebol ou num curso de modelos, tivessem a vida garantida e a fama à sua espera», comenta a psicóloga.
A reflexão de Susana Henriques segue a mesma linha e a socióloga destaca outro aspecto deste desejo de celebridade infantil.
«De uma forma geral, tende a persistir a ideia de que este tipo de actividades não exige qualificações ou esforço particulares, apenas um conjunto de atributos tidos como 'naturais': boa voz, boa figura, jeito para representar...»
Ou seja, que aparecer nos ecrãs e nas revistas está ao alcance de qualquer um, como comprovam as sucessivas séries, e elencos, da novela Morangos com Açúcar. Pois é, afinal, não foi assim há tanto tempo que o artista norte-americano Andy Warhol antecipava um futuro com 15 minutos de fama para todos. Uma máxima levada a sério pelos mais novos, nascidos em plena era mediática de estrelas e estrelinhas sucessivas.
O dinheiro faz o mundo girar
Neste universo, a fama não caminha sem fortuna. Se isso foi atestado pelos miúdos britânicos que responderam ao inquérito já citado, também o foi por aqueles que foram escutados pela economista Juliet B. Schor, aquando da investigação para o seu livro Born to Buy.
Com esta obra, publicada no ano passado nos Estados Unidos, ficou claro que a actual geração de crianças e adolescentes norte-americanos é a mais orientada para o consumo de toda a história, ao ponto de bebés de 18 meses reconhecerem já marcas conceituadas, começando a pedi-las antes mesmo de comemorarem dois anos.
Para fazer frente a esta precoce febre consumista é preciso dinheiro e os miúdos parecem nascer a sabê-lo. Daí que, segundo a pesquisa da professora do Boston College, 75% das crianças queiram ser ricas e 61% famosas. Ao melhor estilo da clássica pescadinha de rabo na boca, querem ser ricas para ter fama e ter fama para ser ricas.
«Não me parece que a fama apareça hoje dissociada do dinheiro. Ao contrário. As profissões ligadas ao entretenimento - actores, cantores, modelos, etc. - são, no geral, muito bem pagas. E essa é a imagem que persiste. A de pessoas com disponibilidade financeira, de tempo, motivacional... para estarem sempre bem-dispostas, elegantes, bonitas, produzidas. E ainda para fazerem o que para a maioria são extravagâncias», comenta Susana Henriques, para acrescentar: «O que acontece é que a ideia de fama fácil e rápida vem associada à ideia de fortuna, igualmente rápida e fácil.»
A investigadora do CIES chama ainda a atenção para outro aspecto de cariz social que poderá levar os pais a compactuar, ou mesmo a promover, esta caminhada dos filhos para a celebridade.
«Tendo em conta o período em que vivemos, em que parece generalizada a ideia de que nem a formação universitária garante uma inserção no mercado de emprego, dando satisfação pessoal e uma recompensa económica satisfatória, este tipo de actividades apresenta-se como uma alternativa», declara a socióloga.
Antes que a desilusão bata à porta
Os pais estão aqui, como no resto, no centro de tudo. E devem ter um espírito crítico. Não se trata de contrariar os sonhos de fama dos filhos, mas de os fazer ver todos os lados da questão. «A maior parte dos miúdos ainda não é suficientemente elaborada, em termos de pensamento, para perceber as múltiplas questões envolvidas na caminhada até à fama», alerta a psicóloga Sara Bahia, sublinhando: «Nem para entender a responsabilidade dessa visibilidade pública.»
Daí que, na opinião da docente da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, seja necessário os pais acompanharem, de perto, as expectativas dos filhos, sendo realistas quanto às suas verdadeiras possibilidades.
«O crescimento dos filhos traz-nos algumas desilusões e, se não estivermos preparados para elas, podemos reagir de forma menos positiva e até perturbadora para nós próprios», começa por dizer a terapeuta, para salientar que os custos de uma porta na cara para os mais pequenos podem ser igualmente elevados, deixando até sequelas para a vida.«O fundamental, no meio disto tudo, é construirmos, ao longo do nosso desenvolvimento, aquilo a que os psicólogos chamam factores protectores de risco. Ao facilitar, ao ir na corrente do sonho e da fantasia, ao incentivá-los sem explicações nem conselhos, acabamos por não contribuir para o surgimento desses factores determinantes na vida adulta», alerta Sara Bahia, confessando: «Temo um bocadinho que a futura geração, ao cair na realidade, não consiga superar. Dificilmente saberá lutar, ultrapassar obstáculos, desenvolver um sentido de auto-eficácia e confiança em si própria, que a ajude a encarar os pequenos e grandes problemas que a vida adulta, a vida real, nos traz.»
Se é assim tão mau eles terem trocado - quem sabe se para sempre - os documentários pelos Morangos com Açúcar e os concursos de talentos? Depende da atitude paterna face aos sonhos de fama. «O importante é não darmos a ideia de que é o acaso que determina a celebridade, mas sim a reflexão pessoal que se faz sobre as coisas e o mundo, assente na procura do conhecimento e na exploração de um potencial», conclui a psicóloga.
Eles querem fama. E você?
Sonhar faz parte do mundo infantil. E sonhar com a fama também. Ser alguém importante, destacar-se da multidão, marcar a diferença - máximas que podem motivar os miúdos na caminhada do futuro... se mantiverem os pés assentes na terra. É nisso que os pais podem, e devem, ajudá-los.
Aqui ficam três dicas:
- Ser famoso, mas a fazer o quê? - Sim, eles querem a glória da fama, mas como pensam lá chegar? A cantar e a representar ou a estudar e investigar? Perguntar sobre os objectivos das crianças ajudará a canalizá-las para uma determinada área de interesse e, simultaneamente, mostrar-lhes que a fama é uma coisa muito vaga.
- O lado negro da celebridade - A partir de certa idade, os miúdos estão prontos a escutar que na fama os tons nem sempre são dourados. Há a perda da privacidade, o risco de falsos amigos, a solidão do sucesso, a gestão contínua de uma carreira e, muitas vezes, o trabalho sem horários nem férias. É fundamental perceberem, desde cedo, que nem tudo são rosas na celebridade.
- A responsabilidade da fama - Ser famoso não é apenas fazer todas as extravagâncias que nos apetecer, é também ser modelo de comportamentos. Portanto, há que explicar às crianças que a fama não trará só prazer, mas também muitas responsabilidades, como, por exemplo, o civismo, a boa conduta e a ajuda aos mais desfavorecidos.
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