Nascem cada vez mais prematuros em Portugal. Fomos à maior maternidade do país conhecer as histórias dos bebés-milagre que cabem na palma da mão.
Patrícia, 26 semanas de gestação, 820 gramas. Guilherme, 26 semanas, 670 gramas. Manuel, 26 semanas, 495 gramas, 31 centímetros. Leonor, 24 semanas, 586 gramas, 17 centímetros apenas. No quadro afixado numa das salas da unidade de cuidados intensivos (UCI) da Maternidade Alfredo da Costa (MAC), em Lisboa, contam-se as histórias de verdadeiros heróis. São fotografias e cartas enviadas pelos pais de alguns dos inúmeros prematuros que por ali passaram, muitas vezes no limiar da sobrevivência, e resistiram para contar. Os testemunhos têm um papel terapêutico para os pais (sobretudo mães) que percorrem aqueles corredores todos os dias. São uma réstia de esperança quando o mundo parece desmoronar-se.
Minúsculos no tamanho, gigantes na coragem. Alguns, de tão pequenos, cabem na palma de uma mão. Dá para imaginar um bebé com o comprimento de um lápis? Só o pensamento arrepia, mas os profissionais da UCI da MAC já viram de tudo, incluindo bebés com menos de 24 semanas de gestação e 400 a 500 gramas de peso. Há 20 anos, as hipóteses de sobreviver nessas condições eram praticamente nulas. Hoje, em mais de metade dos casos com 25 semanas já é possível completar o trabalho que a Natureza deixou a meio.
Fertilização in vitro aumenta riscos de prematuridade
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Hoje, em mais de meta dos casos com 25 semanas já é possível completar o que a Natureza deixou a meio |
Se estivéssemos no início da década de 90, provavelmente Ana Cristina Moreira não tivesse a oportunidade de ver o filho agarrar-se à vida a cada dia que passa. Tudo aconteceu demasiado depressa, sem qualquer aviso. Em Dezembro, uma perda de sangue súbita levou-a até ao Hospital de Torres Vedras. Poucas horas depois estava já na sala de partos da MAC a ver o filho ser levado pela equipa clínica para uma incubadora. Fruto de uma fertilização in vitro, que aumenta os riscos de prematuridade, Tiago nasceu com 949 gramas de peso, às 25 semanas de gestação. Num parto normal, o nascimento ocorre a partir das 38 semanas e o peso supera, em média, os dois quilos.
"Estava tão gordinho que pensei que se ia safar", confessa a mãe, que se apressa a desfazer o equívoco. "Na realidade, estava era inchado." Foi só no dia seguinte, quando pôde finalmente ver Tiago, que Ana Cristina se confrontou com a realidade delicada do filho. Encontrou-o muito mais magro e pequeno do que o imaginara na véspera, protegido numa incubadora e coberto de tubos que lhe forneciam alimento, oxigénio e todos os medicamentos que necessitava. Desde então, só abandona a cabeceira para ir a casa dormir. Antes de se deitar e ao levantar, o ritual é sempre o mesmo: acede ao computador para ver imagens em directo do filho, uma possibilidade garantida 24 horas por dia pelo sistema Baby Care, desenvolvido pela Portugal Telecom.
Ana Cristina fala numa voz pausada. O ar aparentemente sereno contrasta com a angústia que a consome. "Estou calma porque estou medicada", revela. Teve de recorrer aos calmantes para poder estar perto do filho, mas também para o manter tranquilo. "Ele nota se eu estiver mais nervosa."
Sinfonia de cadência monocórdica
Anestesiado pelos calmantes, o coração de Ana Cristina já não entra em sobressalto cada vez que o silêncio na UCI é interrompido pelos alarmes que denunciam qualquer alteração anómala nos parâmetros que medem as funções vitais dos bebés. Soam constantemente, como uma sinfonia de cadência monocórdica que é a lembrança da fragilidade clínica dos pequenos inquilinos da unidade. "Aqui dizem-nos que temos de viver um dia de cada vez mas é mais uma hora de cada vez. O bebé pode estar muito bem num momento e, no momento a seguir, já não estar."
"Temos muito cuidado em não dar falsas esperanças", admite uma enfermeira. As cautelas podem parecer cruéis para um pai, mas são justificadas. Apesar do enorme progresso da ciência, um prematuro é sempre um bebé em risco. Mesmo quando passa para os cuidados intermédios, a última paragem antes da ansiada alta, não significa que esteja livre de perigo. "Como têm uma imunidade muito reduzida, estes bebés estão extremamente vulneráveis a infecções, que podem ser fatais", refere a médica Cristina Matos.
As palavras são quase premonitórias. Uma chamada para o telemóvel interrompe a conversa e a clínica tem de se ausentar por momentos. Minutos depois, irrompe pela porta da UCI empurrando uma incubadora móvel e seguida por meia dúzia de enfermeiros. Não é difícil perceber que algo de errado se passa. O bebé não chora nem se mexe. Está em paragem cárdio-respiratória. Numa sala ao fundo da UCI, a equipa insiste durante largos minutos nas manobras de reanimação. Nem a adrenalina, nem a atropina, nem a massagem cardíaca incessante produzem qualquer efeito. O monitor é desligado e a equipa clínica abandona a sala cabisbaixa.
'Pedro', chamemos-lhe assim para preservar a sua identidade, tinha passado há dias com o irmão gémeo para a unidade de cuidados intermédios. A autópsia confirmará que foi vítima de uma septicemia, uma infecção generalizada que ataca o organismo de forma fulminante e sem aviso. "Desta vez, nada se podia fazer", lamenta a pediatra.
Avanços notáveis na neonantologia
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"Dizem-nos que temos de viver um dia de cada vez, mas é mais uma hora de cada vez", confessa uma mãe cujo filho nasceu às 25 semanas |
No dia em que o conhecemos, Tiago estava há pouco mais de cinco semanas na UCI da MAC e tinha ainda um longo caminho até poder finalmente conhecer a sua casa.
Se estivesse dentro do útero da mãe estaria ainda na 31ª semana de gestação, ou seja, faltar-lhe-iam ainda seis para os seus órgãos atingirem a maturidade necessária. Tinha nascido há mês e meio, mas, na prática, ainda lhe faltavam sete semanas para 'nascer'.
Milagres como este são possíveis graças aos avanços notáveis da neonatologia nos últimos anos. Um deles, explica Cristina Matos, é o surfactante, uma substância produzida em laboratório "que permite a expansão dos pulmões". São os órgãos mais complicados nos prematuros: por se encontrarem subdesenvolvidos, podem originar a morte por asfixia. Por isso, têm sido também fundamentais os avanços na assistência ventilatória, uma conquista que, sublinha Teresa tomé, presidente da secção de neonatologia da sociedade Portuguesa de Pediatria, "permite a utilização de soluções cada vez mais protectoras do pulmão destes bebés, diminuindo as lesões e aumentando a sobrevivência".
Outro avanço significativo foi a generalização do uso da alimentação parentérica, um concentrado de glicose, electrólitos, gordura e proteínas que é introduzido no organismo por via intravenosa. Antes dela, muitos bebés sucumbiam porque não eram capazes de se alimentar devidamente.
Os próprios equipamentos que ajudam a salvar as pequenas vidas tornaram-se cada vez mais sofisticados. Os monitores modernos são capazes de detectar as mais pequenas variações nos sinais vitais do bebé e os instrumentos de apoio a exames e cirurgias, como as sondas, cateteres e agulhas, foram progressivamente miniaturizados, tornando os procedimentos cada vez menos invasivos.
Esta revolução tem sido fundamental para fazer face a uma tendência preocupante em todo o mundo: o aumento do número de nascimentos prematuros. Em Portugal, a percentagem de bebés que nascem antes das 37 semanas (tempo em que o bebé se deve manter dentro do ventre da mãe para os seus órgãos se desenvolverem adequadamente) cresceu de 6,8% em 2004 para 9,1 em 2007. Destes, cerca de 1% são grandes prematuros, isto é, têm menos de 26 semanas de gestação.
O crescimento, explica Teresa Tomé, deve-se não só ao "aumento das gravidezes por procriação medicamente assistida", mas também a um aparente paradoxo: o aumento da qualidade da vigilância pré-natal leva, muitas vezes, o médico a decidir-se pelo nascimento antes do tempo. "As doenças da mãe, como a hipertensão complicada e a diabetes, podem fazer que seja necessário antecipar o parto", conclui.
Mais prematuros, menos sequelas
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Hoje, em mais de meta dos casos com 25 semanas já é possível completar o que a Natureza deixou a meio |
São cada vez mais os bebés que nascem prematuros, mas são também cada vez mais aqueles que sobrevivem. A nível europeu, mais de 90% dos bebés nascidos à 29ª semana. Se há não muitos anos era quase impensável um bebé sobreviver com um quilo, hoje 50% dos que nascem com 500 gramas conseguem-no. Entre as 750 e as mil gramas, as probabilidades superam os 80%.
As taxas de sobrevivência progrediram de tal forma nos últimos anos que o desafio passou a ser outro: garantir que os bebés fiquem com o menor número de sequelas possível e melhorar a sua qualidade de vida. São cada vez mais os estudos que relacionam, por exemplo, a prematuridade com o deficit de atenção e a hiperactividade. Além da debilidade respiratória, podem ocorrer outros problemas, como a cegueira, a surdez, a paralisia cerebral, e problemas digestivos e cardíacos.
Os casos mais extremos encontram-se, naturalmente, entre os grandes prematuros. Segundo um estudo publicado o ano passado no jornal médico "The Lancet", 40% destes bebés revelam, aos cinco anos, problemas cognitivos de diferentes graus e 9% apresentam mesmo paralisia cerebral. Muitos podem apresentar também um coração frágil. Quanto mais prematuros, maiores os problemas.
Mês e meio depois da visita do Expresso, Tiago deixou a UCI e está na unidade de cuidados intermédios da MAC. Sobreviveu a quatro cirurgias - uma ao cérebro, outra ao coração e duas aos intestinos - e, se se confirmarem as melhores expectativas, ainda terá que ser operado novamente ao cérebro antes de receber alta. Ana Cristina sabe que o caminho a percorrer até sair pela porta da maternidade com o filho é ainda longo. A evolução de um prematuro pode ser como uma montanha-russa, mas mantém a esperança. "Estou confiante desde o primeiro dia. Ele já provou que é forte. Vai sair disto e viver muitos anos."
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Mais do que pelo sangue, os irmãos Francisco e Mafalda estão unidos por um destino comum: ambos nasceram prematuros. Há quatro anos a separá-los, mas partilham uma coincidência muito mais feliz: tiveram ambos alta hospitalar no mesmo dia (30 de Janeiro), ele em 2002, ela em 2006. Quando viu Francisco pela primeira vez, minúsculo, com a cabeça do tamanho de uma bola de ténis, coberto de tubos, sem poder tocar-lhe ou pegá-lo ao colo, Carla sentiu-se longe da sua versão romanceada da maternidade. Era como se aquele bebé tão pequeno, protegido pelo vidro da incubadora, não fosse o seu filho.
"O não poder pegar-lhe, beijá-lo e dar-lhe de mamar foi das coisas que mais me marcou", recorda. Quando finalmente regressaram a casa, os cuidados para receber Francisco foram tão extremos que secaram demasiado o ar e o bebé mal conseguia respirar, tendo de voltar à maternidade. Três anos mais tarde, ainda receosos mas com boas indicações médicas de que o calvário não se repetiria, Carla e o marido decidiram que ela iria engravidar de novo.
Uma perda de sangue nas primeiras semanas de gravidez, durante umas férias no Algarve, marcam o início de uma gravidez atribulada. Seguida nas consultas de alto risco da Maternidade Alfredo da Costa (MAC), Carla é preparada para o pior. É-lhe dito que, com um atraso de crescimento intra-uterino tão acentuado, o bebé dificilmente sobreviverá. Embora "assustada", recusou-se a perder a esperança e Mafalda nasceu finalmente às 29 semanas, com 800 gramas. Nem ela, com três anos, nem Francisco, de sete, apresentam hoje sequelas do seu nascimento atribulado. "Com eles aprendi, sobretudo, a viver um dia de cada vez e a nunca desistir daquilo em que acredito."
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Este texto bem poderia intitular-se "Um milagre chamado Bia". Nas semanas que se seguiram ao seu nascimento, a Beatriz sobreviveu a duas paragens cárdio-respiratórias, três pneumotóraxes (acumulações anormais de ar entre o pulmão e a pleura), uma sépsis (infecção generalizada que, se for severa, é fatal para metade dos pacientes), uma pneumonia, um quisto no pulmão que a impedia de respirar sozinha, uma retinopatia (lesão da retina ocular), múltiplas transfusões sanguíneas e até um incêndio que deflagrou na maternidade! Paula Guerra, a mãe, tem ainda gravadas na memória as imagens do primeiro encontro com a filha, quatro dias depois do parto.
"As pernas eram da grossura dos dedos de uma mão, as mãos do tamanho da unha do dedo polegar, a cabeça não era proporcional em relação ao corpo e todo este cabia numa mão." Durante três meses, Paula viveu praticamente na maternidade, só saindo para ir dormir a casa e buscar a filha mais velha à escola. Bárbara, então com oito anos, também sofreu com a experiência da irmã. Em casa, desenhava unidades de cuidados intensivos e simulava incubadoras para as bonecas. Sete anos volvidos e apesar de uma operação recente ao coração, Bia não apresenta hoje qualquer sequela, garante a mãe. "É uma rapariga alegre, inteligente, com óptimas notas e um desenvolvimento adequado para uma criança da sua idade. É apenas um pouco mais baixa, mas os pais também não são muito altos", sorri.
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Quando, às 12 semanas de gestação, o médico lhes disse que iam ser pais de trigémeos, a última coisa em que Cristina e José Maria quiseram pensar foi que os filhos poderiam nascer prematuros. O choque com a realidade só aconteceu às 23 semanas, quando surgiram as primeiras contracções. Internada de imediato, Cristina conseguiu atrasar o parto um mês. Os filhos nasceram na passagem das 27 para as 28 semanas. Quando os viu pela primeira vez, "demasiado pequenos e quase transparentes", desmaiou. "Foi um choque", admite.
Daí em diante o principal pensamento que ocupou a sua mente foi a sobrevivência dos filhos. As meninas revelaram-se mais resistentes: gémeas monozigóticas, partilharam o mesmo canal de alimentação no útero da mãe, uma aprendizagem que as terá preparado para a luta que travariam depois pela sobrevivência. Zé Maria, curiosamente o que nasceu com mais peso, foi aquele que mais sustos pregou aos pais.
Sete anos volvidos, é, dos três irmãos, aquele que, neste momento, apresenta mais sequelas. Foi operado ao estrabismo, teve dois episódios de taquicardia, e apresenta ainda algumas dificuldades de coordenação motora, concentração e atenção que poderão estar relacionadas com o seu nascimento atribulado. Problemas que, garante Cristina, estão muito longe dos momentos conturbados que viveu após o parto e não perturbam a "profunda alegria" de os ver crescer. "Depois do que passámos, aprendemos a pôr as coisas em perspectiva"
■ | 05 Mar 2009 |
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