terça-feira, 9 de setembro de 2008

Conversem comigo.


Mário Ribeiro não tem medo do «politicamente incorrecto». Nem mesmo quando o assunto é a educação dos dois filhos: Tomás, de 11 anos e Inês, de 8. «Não os privo de jogar computador e, às vezes, até comemos de tabuleiro no colo em frente à televisão», diz, propositadamente provocador.
Conhece bem a opinião da maioria dos especialistas, mas está seguro das suas opções. O Tomás e a Inês trazem boas notas para casa e são com frequência elogiados na escola pela forma como falam e escrevem.
O pai reclama uma parte dos créditos do bom desempenho e reconhece na televisão um papel fundamental no estímulo da curiosidade e no incentivo ao diálogo em família. «O que eu faço é falar muito com eles. Falamos sobre tudo: o dia-a-dia, as notícias do telejornal, os programas que eles gostam de ver...», explica.
Sem preconceitos ou radicalismos contra as novas tecnologias, Mário Ribeiro centra a sua opinião numa questão essencial: a importância da conversa entre pais e filhos. O tema poderá parecer banal, mas a acreditar nas conclusões de um estudo britânico, revelado em Março, a falta de diálogo em casa é uma das principais lacunas da educação actual, com graves consequências no futuro.
«Desenvolver a linguagem desde cedo faz toda a diferença no desempenho escolar da criança. E isto significa que os miúdos pequenos precisam de falar e de ter quem converse com eles», alerta Sue Palmer, escritora, professora e autora do estudo, encomendado pela The Basic Skills Agency, uma organização britânica independente de combate à iletracia.
Para a especialista, que faz consultoria de educação há mais de uma década, o trabalho realizado agora com pais e professores de cinco escolas inglesas veio reforçar uma verdade que já antecipava: os pais de hoje concentram-se demasiado na leitura e na escrita e esquecem-se de que a oralidade é uma ferramentas básica de aprendizagem. «Nos últimos 10 anos, tenho falado com centenas de professores do ensino básico. Todos me dizem o mesmo: (...) estão especialmente preocupados com o nível de linguagem de cada nova turma que recebem e com a dificuldade dos miúdos em concentrar-se na aula e ouvir o que os outros têm para lhes dizer», escreve Sue Palmer na introdução do documento.
Evolução negativa
Na Grã-Bretanha, a situação agrava-se de ano para ano. «Em 2003, uma sondagem da National Literacy Trust revelava que 74 por cento dos professores estavam seriamente apreensivos com a deterioração das capacidades verbais dos alunos. Em 2005, numa pesquisa semelhante realizada junto de educadores de infância, a percentagem subia para 89 por cento», escreve Palmer.
Os números são ingleses, mas não causam estranheza à professora do Ensino Básico Fernanda Santos. Com 35 anos de experiência - reformou-se em 2005 - Fernanda não hesita em afirmar que também em Portugal as capacidades de expressão e interpretação dos miúdos «têm vindo a piorar a olhos vistos, tanto na oralidade como na escrita».
Fernanda aponta o dedo aos pais, mas também a toda uma sociedade que elege as revistas cor-de-rosa como leitura preferida e que vive a correr entre o emprego e os afazeres domésticos. «Muitas vezes os próprios pais têm dificuldades em expressar-se, falam mal e lêem pouco, apesar da alta percentagem de licenciaturas... Mas o problema principal é que passam muito pouco tempo com os filhos. Dizia muitas vezes às mães: 'Leve-o consigo. Deixe-o fazer os trabalhos na mesa da cozinha. Vá falando com ele enquanto lava a loiça'», conta.
Mário Ribeiro, assessor de um dos ministros do actual Governo, debate-se com o problema da falta de tempo diariamente. Mas há muito que aprendeu a ver o lado bom das adversidades. «Conversamos muito no carro», diz, resignado. Quando os leva à escola, as viagens de ida de quarenta minutos são um tempo aproveitado a três.
Debate-se o que acontece no mundo e na vida e partilham-se as pequenas experiências do dia-a-dia no emprego e na escola. «Eles fazem muitas perguntas e há sempre conversa. Com a Inês, o difícil é fazê-la calar», diz com um sorriso.
Cabe ao pai o papel de moderador, para assegurar igualdade nos tempos de antena - tarefa nem sempre fácil, mas igualmente válida. «Saber ouvir é dar espaço ao outro, mostrar interesse, permitir que a pessoa acabe o seu raciocínio», explica o psicólogo Armando Afonso, do Centro de Psicologia Aplicada, em Vila Franca de Xira. «Trabalhar a alternância do discurso é muito importante», acrescenta.O princípio citado é válido para todas as partes envolvidas. «Os altos níveis de ansiedade dos pais levam-nos por vezes a interrupções constantes para abreviar o discurso dos mais novos. Muitas crianças até querem conversar, mas acabam por desistir de contar as suas coisas, quando esbarram na impaciência dos adultos. É preciso que os pais saibam mostrar interesse, escutar, dar a vez na conversa, para que no futuro os filhos sejam capazes de fazer o mesmo. «As técnicas de conversação que a criança conhece em casa, com a família, são aquelas que irá pôr em prática com os outros», alerta o psicólogo.
Culpas repartidas
«As mudanças sociais e a evolução tecnológica das últimas décadas têm tido efeitos inesperados sobre o dia-a-dia das famílias e parecem conspirar para reduzir o tempo de conversação entre pais e filhos», comenta Sue Palmer.
O estudo aponta várias causas para a escassez de diálogo em casa. Entre elas, os empregos absorventes dos pais, a falta de hábitos de refeição em família e o excesso de horas passado em frente à televisão sem companhia. Mais de uma em cada três crianças inglesas com menos de quatro anos (40%) tem uma televisão no quarto, critica a autora, citando uma pesquisa realizada em 2005 pelo grupo de trabalho National Literacy Trust.
Para Sue Palmer, o desafio que se coloca a escolas, professores e sociedade em geral não é abrir guerra à televisão, mas fazer com que os pais percebam que são os primeiros e principais professores dos filhos. «Muitos acreditam que a responsabilidade de educar cabe unicamente à escola», lamenta. Esquecem-se que, no que à oralidade diz respeito, é em casa, na intimidade e muitas vezes a dois, que as conversas flúem naturalmente e que melhor se podem trabalhar as capacidades dos mais novos.
Um outro aspecto referido no estudo é a relação pouco saudável dos pais com os livros. Eles sabem que é bom estimular as crianças para a leitura, mas demitem-se da sua responsabilidade no processo, alerta o documento. «Não basta debitar a história, é importante falar sobre ela», concorda Armando Afonso.
Para o especialista, além de reforçar os laços emocionais, «a conversa sobre uma história ou um livro é também uma oportunidade para trocar palavras e ideias, comunicar e com isso desenvolver o raciocínio lógico e espírito crítico da criança».
Novas palavras
Na família Ribeiro, os jogos de palavras há muito que entraram na rotina das brincadeiras. Com a participação de todos, incluindo o pai e a mãe, joga-se um 'scrabble' original em que perde o primeiro a formar uma palavra, estabelecem-se tempos para «falar em verso» e disputam-se sinónimos com a ajuda do dicionário.
Os dois irmãos estão, por isso, à-vontade com o português. «A Inês até escreve poemas», conta o pai, divertido e orgulhoso. Nunca teve medo das palavras difíceis e, em vez de as evitar, aproveitava as oportunidades para aumentar o vocabulário dos filhos. «Agora já os mando ir ver ao dicionário. Antes, explicava-lhes o que queriam dizer recorrendo a imagens e sinónimos mais simples. Sempre gostei de falar com eles como pessoas. Não gosto de diminutivos e palavras de bebé», explica.
Como Mário Ribeiro, também Ana Balsemão gosta de brincar com palavras novas e os seus significados.
A filha, Maria, ainda não tem dois anos, e utiliza palavras muito próprias para pedir o que não consegue dizer, mas soletra 'carro' perfeitamente, sem nunca ter dito 'pópó'.
«Acredito que quanto mais correctamente os adultos falarem com os miúdos, melhor eles falarão. Gosto de escolher palavras concretas, a única excepção é o 'óó' - porque eles começam pelos substantivos e não há um substantivo simples para dormir», explica.
Ana sabe que a Maria é ainda muito pequena e não deixa de achar piada às palavras inventadas pela filha para pedir água e tudo o mais que não sabe dizer. Mas, por uma questão de princípio, responde-lhe sempre com a palavra certa.
«Muitas vezes, os adultos acham piada ao falar 'enrolado' dos miúdos e alimentam isso até muito tarde. Há uma idade para tudo. Aos dois anos, é normal que se usem diminutivos e palavras de bebé, mas promover a infantilização do discurso é errado. Alguns miúdos entram na escola quase sem saber falar como deve ser», lamenta Fernanda Santos.
TPC para pais
Além dos problemas com a fala, Fernanda Santos também recebeu na sala de aula muitas crianças com dificuldades em dar a palavra. «Muitos são filhos únicos, netos únicos... estão habituados a demasiada atenção e a que todos se calem lá em casa para ouvir o que têm para dizer», comenta.
Também eles têm, na opinião da professora, o caminho para o sucesso escolar dificultado. «Dominar as técnicas de diálogo é essencial para aprender o português e seja o que for. Crianças que não sabem falar ou ouvir exigem do professor um esforço adicional para lhes transmitir conhecimentos que já deviam ter adquirido», diz.
Nada que não se resolva com tempo e dedicação. Mas Fernanda Santos sabe o quanto é difícil dar atenção especial a um aluno por entre as solicitações de 20 miúdos travessos. E, por essa razão, deixa aos pais destas crianças o mesmo conselho que a especialista inglesa: conversem muito com eles!

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