terça-feira, 29 de abril de 2008

Acórdãos dos tribunais:Histórias de crianças que estiveram no centro de disp"Não basta ter filhos, é preciso merecê-los" tiveram no centro de disputas


Aos três dias de idade, Daniel (nome fictício) deu entrada num centro de acolhimento temporário. A mãe - que tinha tido o filho em segredo, sem nada dizer ao pai do menino - entregara-o para adopção e não voltou a procurá-lo.

O pai saberia dois meses depois que tinha um filho. Mas não tentou saber onde estava, nem com quem. E aos dez meses, Daniel foi confiado a um casal - ela escriturária, ele funcionário municipal. A equipa de adopção da Divisão de Acção Social de Ponta Delgada foi encarregue de acompanhar o processo.

Em 2002, quando Daniel tinha quase dois anos, o casal requereu a adopção plena. E foi nesta altura que tudo se complicou. O pai biológico de Daniel apareceu e declarou que não consentia. Não queria que a criança fosse adoptada.

Os tribunais - primeiro o de Família e Menores de Ponta Delgada, depois o da Relação de Lisboa - recordaram que a lei determinava que só deve haver adopção quando os "vínculos afectivos próprios da filiação" estão comprometidos ou são inexistentes. Neste caso em concreto, entenderam que havia "um pai interessado no filho", pelo que o "superior interesse da criança" não se realizaria com o casal que, embora tratasse bem de Daniel desde sempre, não era a sua família biológica. A adopção plena não foi decretada.

Laborinho Lúcio, juiz do Supremo Tribunal de Justiça, considera que "os instrumentos de que a lei dispõe já são suficientes para as decisões judiciais e administrativas respeitarem a continuidade das relações afectivas profundas" que as crianças estabelecem com os adultos, sejam da família ou não, que delas tratam. Diz que não fala de casos concretos. Contudo, "a experiência tem demonstrado que nem sempre "esses princípios são tomados em consideração com a expressão que deviam ter".

Por essa razão, assinou, juntamente com 250 personalidades, um documento com a chancela do Instituto de Apoio à Criança (IAC) entregue no dia 15 ao presidente da Assembleia da República. Nele se propõe alterações à actual Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo.

O objectivo é clarificar o conceito legal de "superior interesse da criança". Desde logo garantindo que a lei explicita que qualquer intervenção que se faça junto de um menor é orientada pelo "primado da continuidade das relações psicológicas profundas" da criança. A proposta surge numa altura em que o mediático caso Esmeralda - a criança disputada pelo pai biológico e o casal que a acolheu desde bebé - está na ordem do dia.

Bárbara queria ter ficado com os avós
O caso de Daniel acabaria por chegar ao Supremo Tribunal de Justiça. E um acórdão de Janeiro de 2006 deixou no ar várias interrogações: se o pai de Daniel sabia desde 2000 da existência do filho, por que não procurou saber "onde, como e com quem estava [o menino], diligenciando pela sua guarda ou pelo estabelecimento de um regime de visitas"? Por que levou quase dois anos a manifestar-se?

"Não basta ter filhos, é preciso merecê-los", diz o Supremo. E, tendo em conta a "relação de afecto estabelecida" com o casal que acolheu Daniel, decretou a adopção plena da criança.

Clara Sottomayor, professora de Direito da Família da Universidade Católica Portuguesa, no Porto - outra das subscritoras do documento do IAC -, nota, no entanto, que outras decisões não têm respeitado o "superior interesse" dos mais novos. A que se segue é uma das que considera "particularmente insensível à criança".

Os pais de Bárbara (o nome é fictício) divorciaram-se. Mãe e filha foram viver para uma casa perto dos avós maternos da menina. A relação com eles era muito próxima. A criança manteve também o convívio com o pai.

Quando a mãe de Bárbara morreu, tantos os avós maternos como o pai reclamaram a menina. Entrevistada pelos técnicos do Instituto de Reinserção Social (IRS), ela fez contudo saber que queria ficar com os avós. Mas o tribunal decidiu o contrário.

O que se seguiu é descrito pelo tribunal como "uma birra" - nas palavras citadas no acórdão: Bárbara recusou sair de casa dos avós e foi ordenada a "passagem de mandados de condução da menor a casa do seu pai". Caso fosse necessário, a equipa do IRS deveria chamar a GNR para fazê-los cumprir. A criança era "obrigada a obedecer ao pai".

A Relação de Coimbra acabou por confirmar esta sentença. O acórdão de 30 de Outubro de 2007 cita o Código Civil para explicar que, sendo Bárbara órfã, manda a regra que o poder paternal passe para o outro progenitor, mesmo que o filho não lhe tenha estado confiado até aí. Há excepções, claro: se a entrega ao pai pusesse em perigo "a segurança, saúde, formação moral e educação" de Bárbara, a decisão teria que ser outra. Mas a Relação entendeu que nada aponta para que o pai de Bárbara não fosse "capaz" de cuidar bem dela.

E a vontade da criança? O tribunal entendeu que à partida "um menor de 12 anos" é "naturalmente incapaz".

"A quebra dos vínculos afectivos é vulgar em Portugal", diz Luís Villas-Boas, director do Refúgio Aboim Ascensão, em Faro, subscritor do documento do IAC. Mas não é só por eventuais problemas com a lei. "Os magistrados não são formados para ter em conta esse vínculo."

Ana era disputada pelo irmão e pela mãe
O juiz Laborinho Lúcio nota que, apesar da "prioridade à continuidade das relações psicológicas afectivas profundas não resultar expressamente na lei", nunca deixou de a ter em consideração nas sua decisões. Mas nota que cada caso é um caso. Em Outubro de 2005 o Tribunal da Relação de Lisboa reflectiu precisamente sobre esta questão. O "interesse do menor tem de ser ponderado casuisticamente", sublinhou o colectivo de juízes que se debruçou sobre a história de Ana, uma menina de 14 anos.

Ana, órfã de pai, foi viver com o irmão mais velho, quando não tinha ainda sete anos. O irmão e a cunhada eram as suas "figuras de referência na afectividade, educação e sustento". Até que a mãe disse que a queria com ela.

Ana fez saber que não queria ir viver com a mãe. A sua vontade divergia da regra que consagra que, se o pai morre, "o poder paternal relativo à menor cabe, por força de lei, à mãe". Mas os juízes lembraram que o Código Civil também prevê a possibilidade "de o filho menor ser confiado a terceira pessoa, obviamente quando o interesse do mesmo menor o imponha". E entenderam que, mesmo quando uma criança tem pai e mãe em condições de exercer o poder paternal, não é líquido que a melhor solução não seja mesmo confiá-la "ao cuidado de terceiros". Ana ficou pois aos cuidados do irmão.

Pai é pai...mesmo que desinteressado
Apesar de casos como este, no livro Cuidar da Justiça de Criança e Jovens, Clara Sottomayor lamenta que permaneça no sistema judicial uma mentalidade que "encara a criança como um objecto que necessita apenas de uma casa e de alimentação e que desconhece a importância do afecto e da relação emocional".

Em 1992, exemplifica, a Relação do Porto considerou que "o facto de um menor viver com a avó desde o falecimento da mãe e o desinteresse manifestado pelo pai relativamente ao seu sustento e destino não são fundamento de regulação do exercício do poder paternal". Os avós viram assim negado o direito a obter a guarda dos netos. Várias decisões idênticas foram tomadas posteriormente.

Dulce Rocha, secretária-geral do IAC, diz que é consensual na comunidade científica que o desrespeito pelas "ligações psicológicas profundas" acarreta "graves prejuízos" para as crianças. Mas que a lei não tem sido interpretada uniformemente, seja quando a criança é disputada pelos pais, pela família alargada, ou por terceiros. A proposta do IAC visa pois clarificar conceitos e "evitar que haja soluções diferentes para problemas semelhantes".

Juiz teme que proposta do Instituto de Apoio à Criança gere "confusão"
O juiz do Tribunal de Família e Menores do Barreiro António José Fialho considera que a proposta do Instituto de Apoio à Criança (IAC), sendo bem-intencionada, “não traz nada de novo em relação ao que deve ser o superior interesse da criança”. Diz até que pode “gerar confusão”. E ser “perigosa, porque parece definida para uma situação em concreto” – “a comunicação social tem referido que surge na sequência do caso Esmeralda”.

O IAC propõe a alteração da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP) para clarificar o conceito legal de “superior interesse da criança”. Propõe que a lei consagre que qualquer intervenção junto da criança é orientada pelo “primado da continuidade das relações psicológicas profundas”. E sugere que às várias situações enunciadas que definem perigo (como os maus tratos) se junte esta: uma criança está em perigo se “está aos cuidados de terceiros, durante período de tempo em que se observou o estabelecimento com estes de forte relação de vinculação”, sem que os pais tenham exercido as suas funções parentais e sem que tenha havido uma definição da sua situação jurídica.

Dulce Rocha, secretária-geral do IAC, recusa a ideia de um documento “feito à medida” do caso Esmeralda. Diz que desde 2005 que as propostas são discutidas. E lembra que nesse ano, Vanessa, com cinco anos, morreu no Porto, vítima da maus tratos, depois de sair da casa de uma madrinha onde vivia desde bebé para ir viver com a avó e o pai. Decorria um processo de regulação do poder paternal. “Eu era presidente da Comissão de Protecção de Crianças e emiti uma circular a alertar para a importância de definir a situação jurídica das crianças [que vivem com terceiros].”

António Fialho nota que as autoridades judiciárias e administrativas estão obrigadas a respeitar “o primado da família biológica (e não o critério das relações afectivas profundas)”. É isso que prevê a Constituição e a ordem jurídica internacional. Só assim não é quando estão “verifi cados os pressupostos da separação dos filhos dos pais (por exemplo, quando negligenciem a criança)”. A proposta do IAC pode pois “conflituar com outros princípios do ordenamento jurídico”.

O juiz considera ainda que uma criança que está com um tio ou um padrinho não está necessariamente em perigo. “O que importa é fazer operar uma providência tutelar cível” – uma medida de regulação do poder paternal com confiança a terceira pessoa, por exemplo.

Dulce Rocha contesta. Diz que a regulação do poder paternal não é o mais adequado quando os pais nunca o exerceram. Defende antes a instauração de uma medida de protecção da criança, no âmbito do LPCJP: tem um carácter urgente, acciona de imediato “uma equipa multidisciplinar que assessora o processo” e “ouve todos os intervenientes e a criança”.

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