
Princípio da década de 50. Enfiada num escandaloso biquini, a rapariga olha por debaixo das suas longas pestanas para o polícia, que está a fiscalizar os banhistas, e responde-lhe com duas perguntas: "Ai os fatos de banho de duas peças são proibidos? Tudo bem. Qual das duas peças quer que eu dispa?"
Noutra ocasião, Lilli revela a sua filosofia de vida em conversa com as amigas: "Eu até passava bem sem sair com velhos carecas. O meu orçamento de férias é que não." Muito antes do magnata da imprensa Rupert Murdoch ter inventado a "rapariga da terceira página" para o britânico "The Sun", em 1969, já Lilli fazia os leitores do tablóide "Bild" por toda a Alemanha babarem-se para as páginas do jornal.
De início, era só uma figura de banda desenhada, a preto e branco. Mas em 1955 é lançada a boneca Lilli com três patentes registadas: a cabeça, que se inclinava de forma coquete para o lado; os cabelos, montados numa semiesfera e atados num rabo de cavalo com só uma madeixa a cair na testa; e as pernas, que se mantinham paralelas quando a boneca se sentava, ou se abriam, conforme a ocasião. Tudo isto num corpo de 30 centímetros com muitas curvas, olhos grandes, boca vermelha a condizer com as unhas. É, sem tirar nem pôr, a cara das primeiras Barbies lançadas no mercado quatro anos mais tarde.
Numa viagem à Europa, a fundadora da empresa Mattel (que lançou as Barbies), Ruth Elliott, vê a Bild-Lilli numa montra e compra-a (só nos anos 60 a Mattel irá adquirir os direitos da Lilli aos fabricantes alemães). Pouco tempo depois nasce a Barbie americana, com 29,2 centímetros de altura - menos oito milímetros do que Lilli -, 206 gramas de peso e baptizada com o diminutivo da filha de Ruth.
A primeira aparição da boneca, na feira de brinquedos em Nova Iorque, em Março de 1959, deixa muitos comerciantes cépticos: um brinquedo infantil que parece uma espécie de mulher adulta? Quem vai comprar uma boneca assim? Até hoje, naquela que é a maior história de sucesso da indústria dos brinquedos, foram vendidas mais de mil milhões (um número que poderá não ser totalmente rigoroso mas que se presta a revelar a magnitude do fenómeno).
A Barbie tornou-se um modelo para gerações de raparigas em todo o mundo. Ao contrário da Lilli, de biquini, a primeira Barbie aparece vestida com um fato de banho de uma só peça, com padrão de zebra e saltos altos. A jovem secretária do pós-guerra berlinense, com um estilo de vida frívolo e gostos acima dos seus rendimentos, é transformada pela empresa da Califórnia no modelo da dona de casa suburbana, num mundo próspero, cor-de-rosa e doméstico. Mas, nas proporções, os designers da Mattel foram bem mais ousados.
É legítimo suspeitar-se que quem desenhou a Barbie não perdeu muito tempo a estudar os manuais de anatomia ou os estudos gráficos de Da Vinci sobre as proporções do corpo humano. Em vez de ler os clássicos - afinal estavam na Califórnia -, os homens da Mattel possivelmente limitaram-se a olhar à volta e a sonhar de olhos abertos, depois de algumas "Budweisers" numa esplanada à beira-mar.
Nos estiradores surgiram desenhos inspirados em fantasias masculinas. O resultado final teria, à escala humana, as medidas 99-46-84, distribuídos por um corpo demasiado longo. Perdem-se na pura especulação as razões que os levaram a desenhar a figura duma pré-adolescente anoréxica, com a altura duma holandesa de tamancos, os glúteos e as glândulas mamárias duma Marilyn Monroe, o pescoço das mulheres-girafa padong-karen do Norte da Tailândia e a cintura de uma coquete parisiense à beira da asfixia espartilhada num corset com lâminas de aço para comprimir o corpo entre as ancas e o peito.
De acordo com ginecologistas, uma mulher com tais proporções não teria gordura corporal suficiente para uma primeira menstruação. Aliás, nem espaço para mais do que metade de um fígado. Ortopedistas afirmam que, com aquela altura e aquele tamanho de pés, mais o peso do peito, a Barbie, se fosse humana, dificilmente se aguentaria em pé.
As Barbies não são, obviamente, a causa da repressão feminina. A mutilação do corpo da mulher, dos pés (China, século X até ao século XX) à cabeça, passando pelos genitais e a cintura, tem uma longa tradição. Mas com a Mattel a anatomia impossível torna-se um padrão universal. Com 29, 2 centímetros e 206 gramas de peso, a Barbie é mais parecida com um troféu do que as próprias trophy-wives que inspirou.
Não há oligarca russo, milionário americano ou futebolista português - o nosso equivalente possível - que não tenha uma colecção de candidatas a Barbie no seu cadastro de conquistas. A síndroma de Barbie, clinicamente tipificada, tornou famosa a americana Cindy Jackson (apelido propício a estas coisas) que, em 20 anos, fez três dezenas de operações plásticas.
Basta olhar para o mundo cor-de-rosa das Barbies, ou folhear uma qualquer revista 'do coração', para perceber como os modelos reais se sublimam no mundo de plástico. A mulher-moderna é apresentada como um muito limitado número de variações sobre o mesmo tema. Em Portugal temos a barbie-selvagem com um toque de Taiti (modelo Jardim), a barbie-múmia numa permanente cruzada anti-aging (modelo Caneças) ou a barbie-Babs (modelo Guimarães), que parecem todas estar a milímetros de atingir a perfeição do original da Mattel, se não se desconjuntarem antes. São estes os três tipos apresentados, em milhares de reportagens, fotografias e directos, como os modelos a seguir em Portugal.
Mesmo quem se recusa a aparecer nas revistas 'mundanas' não se livra do rótulo. A psicóloga e política Joana Amaral Dias é insistentemente referida como "Barbie do Bloco". Fomos falar com ela. O encontro tem lugar num café na Praça das Flores em Lisboa. Pondo de parte, por uma fracção de segundo, a irredutível objectividade jornalística, Joana é, não no sentido ornitológico, um 'borracho'. Mas... "Barbie do Bloco"?
Dos homens ninguém diz que o feio é feio ou que o gordo é gordo. Ninguém chama Spiderman a Louçã, Marretas a Gama e Alegre, Chucky a Paulo Portas, Arlequim a Santana Lopes, Cocas a João Soares ou Freddy Krueger a Marcelo Rebelo de Sousa. Porquê dar o nome de uma boneca a uma destacada parlamentar?
Joana argumenta de forma rápida e perspicaz. Tem uma voz forte e ideias próprias bem fundamentadas (o que a distingue, logo à partida, da maioria dos actuais deputados, com os quais este repórter prefere evitar ser visto em locais públicos). Apesar de tudo isso, Joana Amaral Dias é tratada como uma boneca. "Barbie do Bloco é uma coisa que aparece nos blogues, a minha cara com o corpo da Barbie. Não levo a mal, mas faz-me pensar. Os valores associados à Barbie são o sexo e a publicidade." Porquê ela? "Os estereótipos servem para condicionar escolhas. Para as mulheres, fugir a essas escolhas, aos olhos dos outros, diminui-as na sua dignidade. Para alguém que faz uma carreira política, que por acaso se coloca à esquerda e que, por acaso, até defende os direitos das mulheres, esse rótulo, paradoxalmente, ainda ganha mais força. Se uma mulher ascende a posições de destaque, ainda mais se torna necessário pô-la no devido lugar, pô-la na ordem."
A Barbie é uma junk toy? "A Barbie é uma porno toy. Não é uma boneca apropriada para uma criança de quatro anos." Brincou com Barbies? "Brinquei. Mas também brincava com carrinhos e aos índios e cowboys. Não quero banir as Barbies do Planeta, não sou fundamentalista. Não devem é servir de modelo. É extraordinário que em pleno século XXI os brinquedos para rapazes são brinquedos de exploração do mundo e os brinquedos para as raparigas giram à volta do conceito doméstico ou da mulher-objecto, estojos de maquilhagem, bonecas, roupinhas, bebés chorões. Tanto assim é que, se uma rapariga pedir uma retro-escavadora no Natal, os pais vão achar estranho e se um rapaz pedir uma Barbie, a maior parte dos pais vai achar que o filho é gay."
Já ninguém associa as bonecas a rolos de trapos, com fios de lã a fazer de cabelo e um pedaço de pano de cozinha à laia de saia. "Olá, boneca" é o equivalente semântico a "olá, rapariga bonita". Boneca é Barbie. E cada Barbie é, aos 50 anos, mais poderosa e menos individualista (por muitas 'profissões' e roupas que a Mattel invente para elas) do que os oito mil soldados de barro em tamanho real do imperador Qin Shihuangdis com 2200 anos de idade. Apesar de ser vendida em paralelepípedos de cartão plastificado, como pequenos sarcófagos com tampa de vidro, uma Barbie na loja está sempre só, uma leve sleepping beauty, até o dinheiro cair na caixa e a despertar. Depois entra na vida duma criança.
João Manuel Oliveira, investigador do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE, em Lisboa), especializado em estudos de género e teoria feminista, percebe de bonecas. O que significa a Barbie? "Trata-se de um indicador da transmissão de determinados regimes de género para as crianças. A evolução da própria boneca mostra que os sistemas de género são histórica e culturalmente relativos."
Agora, outra vez, como se eu fosse uma criança, por favor. "Veja como a criação da boneca nos anos 50 retratava uma nova representação das mulheres, assente na conquista de um mundo exterior e ligada ao universo do trabalho e não apenas ao espaço doméstico. Por outro lado, veja que o corpo da boneca é um ideal de corpo completamente impossível de atingir, o que reforça a ideia de que uma feminilidade perfeita é claramente inatingível." E que influência pode isso ter sobre os comportamentos femininos? "Não creio que tenha uma influência directa. As pessoas reinterpretam as fontes de influência do comportamento. Mas creio que o ideal de corpo, reforçado por outras fontes, pode contribuir para um sentimento de desadequação das adolescentes e das crianças que poderá ter resultados graves."
Há razões para se ser menos cauteloso nas conclusões: investigadores da Universidade de Sussex atribuem às brincadeiras com Barbies a responsabilidade directa pelo aumento dos distúrbios alimentares entre adolescentes. "As medidas anoréxicas da Barbie diminuem a auto-estima das raparigas e tornam-nas menos satisfeitas com o seu próprio corpo." Outro estudo britânico na área da psicologia conclui que na adolescência as Barbies se tornam objectos de ódio, símbolos indesejados que as raparigas "mutilam e torturam", física ou mentalmente
Encontrada uma coleccionadora adulta de 52 anos em Alcanena, a senhora dona Rosa Vieira, que tem mais de seis centenas e ainda brinca com elas (a justificar a excepção à regra), faltava falar com uma adolescente. Foi preciso baixar a fasquia etária - no último Natal as vendas sofreram uma quebra de 20% - e acabou por ser a mãe da Clara quem transmitiu a resposta da filha: "Que horror, eu brincar com Barbies? Isso é quase um insulto!" E explicou: "A memória é curta. Ela só tem 10 anos e acha que esta história já foi há séculos!"
A Mattel tem por hábito recorrer a um exército de advogados para processar quem se apropria do seu imaginário. Aconteceu já com centenas de empresários e artistas e há três anos com a pintora brasileira Karin Schwarz: os donos da Barbie tentaram impedir a exposição "Bárbaras Garotas", onde várias bonecas aparecem em poses de erotismo lésbico. Mais uma vez, não nos livramos da ideia de que Karin é, ela própria, decalcada de uma proto-barbie. "A Barbie fez parte da minha infância e adolescência. Ela é um objecto de desejo, um tanto irreal, e este ícone nos conquista sem percebermos. Acho que foi um erro tentarem proibir as pessoas de interagir com a boneca. O que fiz foi brincar com a Barbie e mostrar minhas opiniões e impressões para quem desejasse ver. Não me conseguiram censurar. Realmente acabou por ser uma promoção. Pessoas de diversos países enviaram-me mensagens de apoio e adquiriram minhas obras, da Islândia, EUA, Finlândia ou Espanha."
Mas será que o impacte das Barbies é mais perigoso em países com atrasos significativos como a Arábia Saudita (onde foi proibida em 2003) ou Portugal? Além de um produto de consumo de massas, as Barbies são mais populares do que as latas de sopa de tomate de Andy Warhol.
A divulgação da boneca coincide com a afirmação universal dos valores culturais norte-americanos depois da II Guerra Mundial. Ou, como cantavam os Aqua (prontamente processados pela Mattel num processo que se arrastou durante anos): "I'm a barbie girl, in the barbie world./ Life in plastic, it's fantastic./ You can brush my hair, undress me everywhere./ (...) Come on Barbie, let's go party."
A próxima grande questão é: e os homens? Sócrates pode ser Ken? Como revelou o "El País", que o elegeu um dos dez homens mais elegantes do mundo (Lagerfeld ficou em primeiro lugar), o primeiro-ministro português calça Prada e, pelo Natal, os seus ministros ofereceram-lhe um cheque de compras para a Fashion Clinic. Esse é também o sonho de qualquer mulher portuguesa - aparecer ao balcão da Fashion Clinic, pôr as luvas e a carteira na mesa, e dizer: "Curem-me por favor."
Noutra ocasião, Lilli revela a sua filosofia de vida em conversa com as amigas: "Eu até passava bem sem sair com velhos carecas. O meu orçamento de férias é que não." Muito antes do magnata da imprensa Rupert Murdoch ter inventado a "rapariga da terceira página" para o britânico "The Sun", em 1969, já Lilli fazia os leitores do tablóide "Bild" por toda a Alemanha babarem-se para as páginas do jornal.
De início, era só uma figura de banda desenhada, a preto e branco. Mas em 1955 é lançada a boneca Lilli com três patentes registadas: a cabeça, que se inclinava de forma coquete para o lado; os cabelos, montados numa semiesfera e atados num rabo de cavalo com só uma madeixa a cair na testa; e as pernas, que se mantinham paralelas quando a boneca se sentava, ou se abriam, conforme a ocasião. Tudo isto num corpo de 30 centímetros com muitas curvas, olhos grandes, boca vermelha a condizer com as unhas. É, sem tirar nem pôr, a cara das primeiras Barbies lançadas no mercado quatro anos mais tarde.
Numa viagem à Europa, a fundadora da empresa Mattel (que lançou as Barbies), Ruth Elliott, vê a Bild-Lilli numa montra e compra-a (só nos anos 60 a Mattel irá adquirir os direitos da Lilli aos fabricantes alemães). Pouco tempo depois nasce a Barbie americana, com 29,2 centímetros de altura - menos oito milímetros do que Lilli -, 206 gramas de peso e baptizada com o diminutivo da filha de Ruth.
A primeira aparição da boneca, na feira de brinquedos em Nova Iorque, em Março de 1959, deixa muitos comerciantes cépticos: um brinquedo infantil que parece uma espécie de mulher adulta? Quem vai comprar uma boneca assim? Até hoje, naquela que é a maior história de sucesso da indústria dos brinquedos, foram vendidas mais de mil milhões (um número que poderá não ser totalmente rigoroso mas que se presta a revelar a magnitude do fenómeno).
A Barbie tornou-se um modelo para gerações de raparigas em todo o mundo. Ao contrário da Lilli, de biquini, a primeira Barbie aparece vestida com um fato de banho de uma só peça, com padrão de zebra e saltos altos. A jovem secretária do pós-guerra berlinense, com um estilo de vida frívolo e gostos acima dos seus rendimentos, é transformada pela empresa da Califórnia no modelo da dona de casa suburbana, num mundo próspero, cor-de-rosa e doméstico. Mas, nas proporções, os designers da Mattel foram bem mais ousados.
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50 anos de Barbies (parte I) (clique na imagem para ver o documento em formato PDF) |
É legítimo suspeitar-se que quem desenhou a Barbie não perdeu muito tempo a estudar os manuais de anatomia ou os estudos gráficos de Da Vinci sobre as proporções do corpo humano. Em vez de ler os clássicos - afinal estavam na Califórnia -, os homens da Mattel possivelmente limitaram-se a olhar à volta e a sonhar de olhos abertos, depois de algumas "Budweisers" numa esplanada à beira-mar.
Nos estiradores surgiram desenhos inspirados em fantasias masculinas. O resultado final teria, à escala humana, as medidas 99-46-84, distribuídos por um corpo demasiado longo. Perdem-se na pura especulação as razões que os levaram a desenhar a figura duma pré-adolescente anoréxica, com a altura duma holandesa de tamancos, os glúteos e as glândulas mamárias duma Marilyn Monroe, o pescoço das mulheres-girafa padong-karen do Norte da Tailândia e a cintura de uma coquete parisiense à beira da asfixia espartilhada num corset com lâminas de aço para comprimir o corpo entre as ancas e o peito.
De acordo com ginecologistas, uma mulher com tais proporções não teria gordura corporal suficiente para uma primeira menstruação. Aliás, nem espaço para mais do que metade de um fígado. Ortopedistas afirmam que, com aquela altura e aquele tamanho de pés, mais o peso do peito, a Barbie, se fosse humana, dificilmente se aguentaria em pé.
As Barbies não são, obviamente, a causa da repressão feminina. A mutilação do corpo da mulher, dos pés (China, século X até ao século XX) à cabeça, passando pelos genitais e a cintura, tem uma longa tradição. Mas com a Mattel a anatomia impossível torna-se um padrão universal. Com 29, 2 centímetros e 206 gramas de peso, a Barbie é mais parecida com um troféu do que as próprias trophy-wives que inspirou.
Não há oligarca russo, milionário americano ou futebolista português - o nosso equivalente possível - que não tenha uma colecção de candidatas a Barbie no seu cadastro de conquistas. A síndroma de Barbie, clinicamente tipificada, tornou famosa a americana Cindy Jackson (apelido propício a estas coisas) que, em 20 anos, fez três dezenas de operações plásticas.
Basta olhar para o mundo cor-de-rosa das Barbies, ou folhear uma qualquer revista 'do coração', para perceber como os modelos reais se sublimam no mundo de plástico. A mulher-moderna é apresentada como um muito limitado número de variações sobre o mesmo tema. Em Portugal temos a barbie-selvagem com um toque de Taiti (modelo Jardim), a barbie-múmia numa permanente cruzada anti-aging (modelo Caneças) ou a barbie-Babs (modelo Guimarães), que parecem todas estar a milímetros de atingir a perfeição do original da Mattel, se não se desconjuntarem antes. São estes os três tipos apresentados, em milhares de reportagens, fotografias e directos, como os modelos a seguir em Portugal.
Mesmo quem se recusa a aparecer nas revistas 'mundanas' não se livra do rótulo. A psicóloga e política Joana Amaral Dias é insistentemente referida como "Barbie do Bloco". Fomos falar com ela. O encontro tem lugar num café na Praça das Flores em Lisboa. Pondo de parte, por uma fracção de segundo, a irredutível objectividade jornalística, Joana é, não no sentido ornitológico, um 'borracho'. Mas... "Barbie do Bloco"?
Dos homens ninguém diz que o feio é feio ou que o gordo é gordo. Ninguém chama Spiderman a Louçã, Marretas a Gama e Alegre, Chucky a Paulo Portas, Arlequim a Santana Lopes, Cocas a João Soares ou Freddy Krueger a Marcelo Rebelo de Sousa. Porquê dar o nome de uma boneca a uma destacada parlamentar?
Joana argumenta de forma rápida e perspicaz. Tem uma voz forte e ideias próprias bem fundamentadas (o que a distingue, logo à partida, da maioria dos actuais deputados, com os quais este repórter prefere evitar ser visto em locais públicos). Apesar de tudo isso, Joana Amaral Dias é tratada como uma boneca. "Barbie do Bloco é uma coisa que aparece nos blogues, a minha cara com o corpo da Barbie. Não levo a mal, mas faz-me pensar. Os valores associados à Barbie são o sexo e a publicidade." Porquê ela? "Os estereótipos servem para condicionar escolhas. Para as mulheres, fugir a essas escolhas, aos olhos dos outros, diminui-as na sua dignidade. Para alguém que faz uma carreira política, que por acaso se coloca à esquerda e que, por acaso, até defende os direitos das mulheres, esse rótulo, paradoxalmente, ainda ganha mais força. Se uma mulher ascende a posições de destaque, ainda mais se torna necessário pô-la no devido lugar, pô-la na ordem."
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50 anos de Barbies (parte II) (clique na imagem para ver o documento em formato PDF) |
A Barbie é uma junk toy? "A Barbie é uma porno toy. Não é uma boneca apropriada para uma criança de quatro anos." Brincou com Barbies? "Brinquei. Mas também brincava com carrinhos e aos índios e cowboys. Não quero banir as Barbies do Planeta, não sou fundamentalista. Não devem é servir de modelo. É extraordinário que em pleno século XXI os brinquedos para rapazes são brinquedos de exploração do mundo e os brinquedos para as raparigas giram à volta do conceito doméstico ou da mulher-objecto, estojos de maquilhagem, bonecas, roupinhas, bebés chorões. Tanto assim é que, se uma rapariga pedir uma retro-escavadora no Natal, os pais vão achar estranho e se um rapaz pedir uma Barbie, a maior parte dos pais vai achar que o filho é gay."
Já ninguém associa as bonecas a rolos de trapos, com fios de lã a fazer de cabelo e um pedaço de pano de cozinha à laia de saia. "Olá, boneca" é o equivalente semântico a "olá, rapariga bonita". Boneca é Barbie. E cada Barbie é, aos 50 anos, mais poderosa e menos individualista (por muitas 'profissões' e roupas que a Mattel invente para elas) do que os oito mil soldados de barro em tamanho real do imperador Qin Shihuangdis com 2200 anos de idade. Apesar de ser vendida em paralelepípedos de cartão plastificado, como pequenos sarcófagos com tampa de vidro, uma Barbie na loja está sempre só, uma leve sleepping beauty, até o dinheiro cair na caixa e a despertar. Depois entra na vida duma criança.
João Manuel Oliveira, investigador do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE, em Lisboa), especializado em estudos de género e teoria feminista, percebe de bonecas. O que significa a Barbie? "Trata-se de um indicador da transmissão de determinados regimes de género para as crianças. A evolução da própria boneca mostra que os sistemas de género são histórica e culturalmente relativos."
Agora, outra vez, como se eu fosse uma criança, por favor. "Veja como a criação da boneca nos anos 50 retratava uma nova representação das mulheres, assente na conquista de um mundo exterior e ligada ao universo do trabalho e não apenas ao espaço doméstico. Por outro lado, veja que o corpo da boneca é um ideal de corpo completamente impossível de atingir, o que reforça a ideia de que uma feminilidade perfeita é claramente inatingível." E que influência pode isso ter sobre os comportamentos femininos? "Não creio que tenha uma influência directa. As pessoas reinterpretam as fontes de influência do comportamento. Mas creio que o ideal de corpo, reforçado por outras fontes, pode contribuir para um sentimento de desadequação das adolescentes e das crianças que poderá ter resultados graves."
Há razões para se ser menos cauteloso nas conclusões: investigadores da Universidade de Sussex atribuem às brincadeiras com Barbies a responsabilidade directa pelo aumento dos distúrbios alimentares entre adolescentes. "As medidas anoréxicas da Barbie diminuem a auto-estima das raparigas e tornam-nas menos satisfeitas com o seu próprio corpo." Outro estudo britânico na área da psicologia conclui que na adolescência as Barbies se tornam objectos de ódio, símbolos indesejados que as raparigas "mutilam e torturam", física ou mentalmente
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Uma boneca em números (clique na imagem para ver o documento em formato PDF) |
Encontrada uma coleccionadora adulta de 52 anos em Alcanena, a senhora dona Rosa Vieira, que tem mais de seis centenas e ainda brinca com elas (a justificar a excepção à regra), faltava falar com uma adolescente. Foi preciso baixar a fasquia etária - no último Natal as vendas sofreram uma quebra de 20% - e acabou por ser a mãe da Clara quem transmitiu a resposta da filha: "Que horror, eu brincar com Barbies? Isso é quase um insulto!" E explicou: "A memória é curta. Ela só tem 10 anos e acha que esta história já foi há séculos!"
A Mattel tem por hábito recorrer a um exército de advogados para processar quem se apropria do seu imaginário. Aconteceu já com centenas de empresários e artistas e há três anos com a pintora brasileira Karin Schwarz: os donos da Barbie tentaram impedir a exposição "Bárbaras Garotas", onde várias bonecas aparecem em poses de erotismo lésbico. Mais uma vez, não nos livramos da ideia de que Karin é, ela própria, decalcada de uma proto-barbie. "A Barbie fez parte da minha infância e adolescência. Ela é um objecto de desejo, um tanto irreal, e este ícone nos conquista sem percebermos. Acho que foi um erro tentarem proibir as pessoas de interagir com a boneca. O que fiz foi brincar com a Barbie e mostrar minhas opiniões e impressões para quem desejasse ver. Não me conseguiram censurar. Realmente acabou por ser uma promoção. Pessoas de diversos países enviaram-me mensagens de apoio e adquiriram minhas obras, da Islândia, EUA, Finlândia ou Espanha."
Mas será que o impacte das Barbies é mais perigoso em países com atrasos significativos como a Arábia Saudita (onde foi proibida em 2003) ou Portugal? Além de um produto de consumo de massas, as Barbies são mais populares do que as latas de sopa de tomate de Andy Warhol.
A divulgação da boneca coincide com a afirmação universal dos valores culturais norte-americanos depois da II Guerra Mundial. Ou, como cantavam os Aqua (prontamente processados pela Mattel num processo que se arrastou durante anos): "I'm a barbie girl, in the barbie world./ Life in plastic, it's fantastic./ You can brush my hair, undress me everywhere./ (...) Come on Barbie, let's go party."
A próxima grande questão é: e os homens? Sócrates pode ser Ken? Como revelou o "El País", que o elegeu um dos dez homens mais elegantes do mundo (Lagerfeld ficou em primeiro lugar), o primeiro-ministro português calça Prada e, pelo Natal, os seus ministros ofereceram-lhe um cheque de compras para a Fashion Clinic. Esse é também o sonho de qualquer mulher portuguesa - aparecer ao balcão da Fashion Clinic, pôr as luvas e a carteira na mesa, e dizer: "Curem-me por favor."
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■ | 09 Mar 2009 |
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